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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

 

O Voto de Jefté: 

Entre a tragédia humana e a revelação do verdadeiro sacrifício.

 
O drama do voto de Jefté, destacando os momentos centrais da narrativa bíblica, o contexto histórico-religioso e o contraste entre o sacrifício humano e a revelação do verdadeiro culto em Cristo.

O episódio do voto de Jefté, narrado em Juízes 11,29-39a, é um dos relatos mais difíceis e polêmicos de toda a Sagrada Escritura. Ele nos coloca diante de uma situação desconcertante: um juiz de Israel, “movido pelo Espírito do Senhor”, promete oferecer em holocausto a primeira pessoa que sair de sua casa, caso obtenha vitória sobre os amonitas. Para sua dor, quem sai ao seu encontro é justamente sua filha única. E o texto conclui dizendo que ele cumpriu o voto. Essa narrativa levanta questões históricas, teológicas, éticas e espirituais que merecem ser aprofundadas.

1. O relato bíblico

O texto apresenta três momentos decisivos:

  1. O voto precipitado de Jefté: “Se entregares os amonitas em minhas mãos, o primeiro que sair da porta da minha casa… eu o oferecerei em holocausto” (Jz 11,30-31).
  2. A vitória concedida por Deus: Israel triunfa sobre os inimigos.
  3. O cumprimento trágico: sua filha sai ao encontro dele, com danças de alegria. Ela aceita o destino com coragem, pede apenas dois meses para chorar sua virgindade com as amigas, e Jefté cumpre o voto.

O relato termina com a lembrança de que, em Israel, as jovens faziam anualmente memória da filha de Jefté.

2. Contexto histórico e religioso

A filha de Jefté em oração. Ela representa sua aceitação corajosa do destino, com uma expressão serena e profunda, envolta em luz suave e tons terrosos que evocam espiritualidade e entrega.

O episódio deve ser compreendido dentro do período dos Juízes, tempo de instabilidade social e religiosa. Não havia ainda uma monarquia unificada; cada tribo vivia quase isolada, exposta às pressões militares e culturais dos povos vizinhos (moabitas, amonitas, cananeus).

Nesse ambiente, o sincretismo religioso era frequente. As práticas de sacrifício humano eram conhecidas entre os povos da região, especialmente nas religiões que cultuavam Moloc, às quais se atribuía a exigência de oferendas de crianças.

A Lei de Israel, porém, era clara: Javé rejeitava esse tipo de prática. Textos como Levítico 18,21 e Deuteronômio 12,31 proíbem explicitamente sacrificar filhos em holocausto. O próprio relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) mostra que Deus não deseja sangue humano, mas fidelidade da fé.

A história de Jefté, portanto, reflete uma tensão real: o povo eleito, chamado a uma fé pura em Javé, muitas vezes se deixava contaminar por costumes pagãos.

3. O sentido literário e teológico

É fundamental notar que o texto não apresenta Deus exigindo o voto nem aprovando o sacrifício. Trata-se de uma iniciativa precipitada de Jefté, fruto de zelo mal orientado.

Assim, o episódio funciona como narrativa de advertência: mostra até onde pode levar uma religiosidade marcada por fanatismo e falta de discernimento. Jefté, ao invés de confiar simplesmente na promessa de Deus, tenta “negociar” a vitória com uma promessa absurda.

Alguns estudiosos levantam a hipótese de que a filha não tenha sido imolada, mas apenas consagrada ao celibato, vivendo no templo em virgindade perpétua. Essa leitura encontra apoio no fato de ela lamentar não a morte em si, mas a virgindade perdida (Jz 11,37-38). No entanto, a maior parte dos exegetas considera que o texto, lido literalmente, fala de um sacrifício humano real.

Seja como for, a intenção do autor bíblico parece ser denunciar a consequência dramática de um voto precipitado e da contaminação com práticas pagãs.

4. A controvérsia ética

Jefté olhando para sua filha — um momento carregado de dor, amor e resignação. A expressão de Jefté revela o peso do voto precipitado, enquanto sua filha, com olhar sereno e triste, parece aceitar seu destino.

O problema que mais incomoda os leitores é: como um juiz de Israel, revestido do Espírito do Senhor (v. 29), poderia realizar algo que contraria a Lei de Deus?

A resposta pode ser buscada em dois pontos:

  1. O Espírito do Senhor atua para conceder a vitória militar, não para inspirar o voto. O voto é uma decisão humana, marcada por fraqueza e ignorância.
  2. O livro dos Juízes, em geral, apresenta a vida religiosa de Israel como degradada. A frase final da obra resume bem: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava melhor” (Jz 21,25). O sacrifício de Jefté, então, é mais um sintoma dessa crise espiritual.

5. Atualidade da narrativa

Apesar de distante de nossa realidade, a história de Jefté carrega mensagens muito atuais.

  • Religiosidade distorcida: quando a fé se mistura com práticas supersticiosas, promessas vazias ou fanatismo, gera sofrimento e morte, em vez de vida. Quantos ainda hoje fazem promessas a Deus movidos por medo, barganha ou desespero, e depois sofrem as consequências!
  • Deus não pede sacrifícios humanos: a revelação bíblica deixa claro que o culto agradável a Javé não é o sangue, mas a vida entregue no amor. O profeta Oséias já dizia: “Quero misericórdia, e não sacrifício” (Os 6,6).
  • Discernimento vocacional: a filha de Jefté, em algumas leituras, teria sido dedicada a uma vida de virgindade. Isso nos faz refletir sobre a importância de escolhas feitas com liberdade e não impostas por votos impensados ou pressões externas.

6. O cumprimento em Cristo

Ela mostra Jesus crucificado com profundidade emocional e espiritual, iluminado por uma luz dourada que contrasta com o fundo sombrio — revelando que, mesmo na dor, há redenção. A presença do cálice e da hóstia no primeiro plano conecta diretamente à Eucaristia, sinal do sacrifício que traz vida.

O voto de Jefté trouxe morte e luto. Mas a história bíblica avança para mostrar que o único sacrifício que agrada a Deus é o de Cristo.

Jesus não foi oferecido por voto precipitado, mas se entregou livremente por amor, em obediência ao Pai e para a salvação da humanidade. A cruz, que poderia ser vista como sinal de derrota, torna-se a plenitude da vida.

Na Eucaristia, celebramos justamente essa oferta: não um culto de morte, mas a presença de Cristo que se dá como alimento de vida eterna. É o “sacrifício da nova aliança”, que substitui todos os sacrifícios antigos.

7. Lições para hoje

Da história de Jefté podemos extrair três grandes ensinamentos:

  1. Evitar promessas vazias: Deus não precisa de votos mirabolantes, mas de um coração sincero que viva a fé no cotidiano.
  2. Discernir a vontade de Deus: a autêntica religião não é fanatismo nem superstição, mas escuta da Palavra e prática da misericórdia.
  3. Viver do sacrifício de Cristo: só Jesus é o verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo. Nele encontramos vida em abundância.

 

O episódio do voto de Jefté continua sendo um texto desconcertante, mas profundamente pedagógico. Ele mostra até onde pode levar a mistura entre fé e superstição, e ao mesmo tempo prepara o caminho para a revelação plena em Cristo.

O voto humano precipitado trouxe morte e luto; o sacrifício de Jesus trouxe vida e esperança. É essa esperança que alimenta a nossa fé e que celebramos em cada Eucaristia: Deus não deseja a morte de ninguém, mas a vida de todos.

Assim, diante do altar, aprendemos que o verdadeiro culto é viver a fé no amor, oferecer a própria vida como dom, e caminhar como discípulos daquele que é o único sacrifício que salva.

 

 Referências:

  • Bíblia de Jerusalém, nota a Jz 11,30-40.
  • Roland de Vaux, Instituições de Israel.
  • Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento.
  • Catecismo da Igreja Católica, nn. 2099-2100.