Mensagem
Pastoral sobre Família de Reconciliação
INTRODUÇÃO
1.
Na esteira do último Sínodo dos Bispos para a África, a CEAST, no quadro da sua
programação pastoral trienal, depois de ter reflectido ao longo do ano de 2011
sobre a “Família e Matrimónio”, dedica este ano pastoral de 2012 à reflexão do
tema: “Família e Reconciliação”. A família, igreja doméstica, célula e base da
sociedade, é também o lugar privilegiado da aprendizagem do perdão e da reconciliação.
O VI Encontro Mundial das Famílias, que teve lugar na cidade do México em
Janeiro de 2008, lembrou-nos a todos o papel das famílias cristãs e o seu dever
de educar e formar para os valores humanos e cristãos. Importa, pois, tudo
fazer para proteger a família, se queremos preservar a paz e a harmonia social.
A Igreja, fiel aos ensinamentos de Cristo, prega por toda a parte, oportuna e
inoportunamente, o evangelho do perdão e da reconciliação.
2. Família
e Reconciliação caminham juntas, pois, enquanto a família, derivada do
matrimónio e fundada no amor, representa a célula primária da Igreja e da
sociedade; a reconciliação é uma das experiências básicas da vida cristã e do
amor de Deus, possibilidade permanente de acolher a graça de Deus que permite a
regeneração do homem e da mulher, criados à sua imagem e semelhança (Gen. 1,26)
fazendo com que o reconciliado reencontre a fonte de bênção (Mt 18, 15-20; Jo
20,19-23).
I
– ALGUNS MALES DE QUE ENFERMA A FAMÍLIA
1. As
falsas ideologias, os longos anos de guerra fratricida e de violência, e a
pobreza económica extrema dilaceraram profundamente as famílias angolanas.
As deslocações forçadas, a falta de habitação condigna, a alimentação
insuficiente, o desemprego, o alcoolismo, o sistema de saúde deficitário, a
violência doméstica nas suas mais variadas formas, a fuga à paternidade, as
relações extraconjugais, estáveis ou ocasionais, causadoras de chantagens e
rivalidades são alguns exemplos de males gerados por uma concepção deturpada de
família e agravados pela instabilidade provocada pela guerra.
Preocupa-nos
sobremaneira o aumento de lares constituídos por gerações múltiplas - avós,
pais, filhos e netos - a partilharem espaços limitados, onde se cruzam
conflitos por interesses de espaços e de gerações.
2. A
disseminação massiva de informação através de diferentes meios de comunicação,
principalmente da televisão e da internet, a par das suas vantagens, também tem
efeitos nocivos no seio familiar. Não poucas vezes, a educação dos filhos,
sobretudo nas cidades, é confiada às telenovelas, filmes e programas
inadequados para as crianças, longe da atenção e do controlo dos pais e
encarregados de educação, absorvidos como andam pela busca de subsistência,
quando não alienados pelo pretexto de uma falsa liberdade, o que acaba por
deixar os filhos entregues à sua sorte e expostos à violência, à pornografia, e
a outros comportamentos nocivos como o aborto, o desrespeito à autoridade
paterna, namoros e casamentos precoces, contravalores amplamente difundidos
pela televisão e pela internet.
3. A
desestruturação social e familiar é visível na nossa sociedade. A relação
intrafamiliar ficou banalizada sobretudo na separação dos membros das famílias
que são, para todos os efeitos, a garantia de estabilidade dentro da mesma.
Torna-se cada vez mais frequente as obrigações laborais levarem os cônjuges a
viver habitualmente a muitos quilómetros de distância um do outro.
A
guerra foi um mal que afectou não apenas os chefes de famílias, mas, também,
todos os seus membros, ficando estes vulnerados até ao ponto de perderem os
valores elementares dentro da família, tais como o perdão, a harmonia e o
respeito dentro do lar. Deste modo, fica subvertida a ordem dos valores.
4. Alguns contravalores da nossa cultura têm
ressurgido com perigosa intensidade.
As
acusações de feitiçaria, tanto contra as crianças como contra os velhos,
têm levado à destruição de muitas famílias, causando à exclusão, do seio
familiar, destas franjas, já por si necessitadas de carinho e aconchego,
traumatizando-as para o resto das suas vidas. A crença na feitiçaria tornou-se
tão perniciosa que, até nas grandes cidades, influencia a vida de não só de
iletrados mas também de intelectuais, que nela colocam toda a sua confiança.
Mais
doloroso ainda é que determinados grupos religiosos, na ânsia do lucro fácil,
vão confundindo, em nome de Deus, a verdade com o erro, proclamando-se como
visionários do oculto. Mas como bem diz o profeta: “Os ídolos só dão
respostas vãs e os adivinhos têm visões mentirosas, fornecem sonhos enganadores
e dão consolações ilusórias. Por isso andam perdidos como ovelhas sem pastor” (Zac
10, 2).
As
exigências financeiras e materiais feitas nas chamadas “cartas de pedidos” e
“alambamentos”, excedem o simbolismo primário do dote, tornando-se, em
muitos casos, verdadeiros negócios de compra e venda, que fragilizam o papel e
a dignidade da mulher na família.
Algumas práticas que excluem a mulher e os filhos da herança, por morte do
marido e do pai, criam enormes injustiças, fragmentam as famílias, empurrando
muitas vezes a viúva e os filhos para situações de mendicidade.
A
concepção errada de que a abundância de meios materiais legitima a constituição
de famílias poligâmicas acaba por se tornar uma fonte de conflitos e rivalidades.
5. Por
último, os modelos familiares dominantes em cargos públicos - sobretudo
políticos e económicos -, em muitos casos, não são exemplares e fazem com que
muitos jovens não encontrem referências a seguir, o que é deplorável.
II
– A FAMÍLIA AO SERVIÇO DA JUSTIÇA, DA RECONCILIAÇÃO E DA PAZ.
6. O
Concilio Vaticano II, na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo
contemporâneo, afirma que “a família - na qual se congregam as diferentes
gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a
conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social -
constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão, todos aqueles que
têm alguma influência nas comunidades e grupos sociais, devem contribuir
eficazmente para a promoção do matrimónio e da família” (GS 52).
Apesar
dos modelos de família sofrerem variações ao longo dos tempos e nos diversos
contextos culturais, ela constitui sempre uma base fundamental da sociedade,
sendo chamada a desempenhar um papel crucial na educação, desenvolvimento e
socialização de cada pessoa humana, que a qualidade da vida social acaba por
reproduzir em grande parte. Como ensinou o Beato Papa João Paulo II, de
veneranda memória, “enquanto comunidade educativa, a família deve ajudar o
ser humano a discernir a própria vocação e a assumir o empenho necessário para
uma maior justiça, formando-o desde o início, para relações interpessoais,
ricas de justiça e de amor” (FC 2). Esta exigência passa inequivocamente
pelo dever de o pai e a mãe não serem apenas progenitores, mas também
educadores (GE, 3).
Apesar
de este dever estar consagrado na legislação angolana, é com tristeza que
assistimos à atitude egoísta e cobarde de muitos pais que não contribuem para o
sustento e a educação dos filhos por si gerados, com consequências traumáticas
no desenvolvimento da sua personalidade. O Beato João Paulo II reconhecia que “se
coloca assim a toda a Igreja o dever de uma reflexão e de um empenho bastante
profundo, para que a nova cultura emergente seja intimamente evangelizada,
sejam reconhecidos os verdadeiros valores, sejam defendidos os direitos do
homem e da mulher e seja promovida a justiça também nas estruturas da sociedade”
(FC 8).
7.
Importa reconhecer que a verdadeira Paz nasce da Justiça (Is. 32,17) e os
índices de violência – física, psicológica, sexual, económica, cultural,
religiosa, etc - tanto na família como na sociedade, são sinal manifesto de
graves injustiças, que exigem reparação e um processo de reconciliação onde a
dignidade de cada pessoa seja reconhecida e respeitada.
8.
Como refere a Declaração Final da Segunda Assembleia Especial para a África do
Sínodo dos Bispos, realizada recentemente, “a Igreja em África, quer
enquanto Família de Deus, quer ao nível individual dos seus membros crentes,
tem o dever de ser instrumento de paz e de reconciliação, segundo o coração de
Cristo, nossa paz e reconciliação» (Nuntius 8); e, com as demais
Igrejas em África, a Igreja em Angola está «consciente de que muitas das
nossas famílias vivem sob uma grande pressão. A pobreza torna frequentemente os
pais incapazes de cuidar dos seus filhos, com consequências desastrosas.
Queremos recordar aos governos e às autoridades civis
que
um país que destrói com as suas leis as suas próprias famílias, hipoteca o
futuro da própria nação. Muitas famílias pedem apenas o suficiente para
sobreviverem. E elas têm direito a viver»
(Mensagem [Nuntius], 24).
9.
Perante os enormes desafios que se colocam hoje às famílias angolanas e às
entidades civis e religiosas a quem é confiado o encargo de as promover e
proteger, mesmo reconhecendo a diversidade dos contextos e das nossas
comunidades eclesiais, ousamos apresentar algumas propostas concretas que, uma
vez postas em prática, vão ajudar as famílias angolanas, católicas ou não, a
serem mais sólidas, estáveis e felizes. Desta forma, vamos também contribuindo
para a construção de uma sociedade mais humana e por isso mais justa, próspera
e pacífica, em suma, mais conforme aos desígnios de Deus.
10.
Por isso, dirigimos o nosso apelo a vários actores que desempenham um papel
fundamental na qualidade da vida familiar.
Às
Comunidades Cristãs pedimos o compromisso de:
ü promover uma evangelização integral que inclua, além
da dimensão religiosa e espiritual, a dimensão familiar, social, económica,
cultural e política.
ü intensificar os serviços de escuta e aconselhamento
familiar nas paróquias, como instâncias de reconciliação;
ü promover grupos e movimentos apostólicos que ajudam as
famílias católicas a viver as diferentes etapas por que vão passando num clima
de entre-ajuda humana e espiritual;
ü promover nas Paróquias e Missões cursos de relações
humanas e gestão de conflitos com aplicações concretas à vida familiar;
ü incluir nos cursos de preparação do matrimónio
temáticas que ajudem a aprofundar a beleza e a graça sacramental do matrimónio
e a perceber as dificuldades concretas da vida familiar, algumas formas
concretas de as prevenir e/ou superar, indicando também as entidades que
poderão ajudar os noivos a enfrentá-las;
ü estimular as Comissões de Justiça e Paz para que
ajudem as pessoas a accionar os mecanismos legais que obrigam os progenitores a
contribuir para o sustento de todos os filhos que geraram;
ü estimular as Paróquias e Missões a criar creches e
actividades de ocupação de tempos livres para ajudar as crianças, adolescentes
e jovens (que vão crescendo sem a presença de adultos) a interiorizar regras,
hábitos e a desenvolver as suas capacidades de forma positiva;
ü tomar iniciativas que ajudem a prevenir e permitam
tratar a dependência do álcool e das drogas, que afecta dramaticamente muitas
famílias.
ü acolher e apoiar as famílias cujos membros estão
infectados ou afectados pelo VIH.
Às
entidades do Estado o empenho de:
ü implementar politicas públicas de apoio às famílias:
habitação digna a custos acessíveis, acesso a creches e escolas para todos,
políticas que fomentem o emprego e a qualificação dos angolanos, valorizando o
trabalho e o descanso.
ü promover a multiplicação de instituições que permitam
a ocupação construtiva dos tempos livres através de bibliotecas, incentivo de
actividades literárias, desportivas, recreativas e culturais.
ü maior protecção social dos membros mais vulneráveis
que são abandonados ou rejeitados pelas suas famílias por razões culturais ou
económicas.
ü tanto quanto possível, nas áreas a requalificar para
construção, as famílias cujas casas se prevêem demolir possam ser realojadas
condignamente na mesma zona de residência, evitando o seu desenraizamento e
aliviando os seus gastos com deslocações para a escola, o trabalho, etc.
ü desenvolver políticas que desincentivem o consumo
excessivo de álcool, num país onde uma cerveja é mais barata que uma garrafa de
água.
ü criar instituições competentes para tratar a
dependência do álcool e de outras drogas.
Aos
Meios de Comunicação Social solicitamos encarecidamente uma participação mais activa na formação e educação
das nossas famílias para os valores cívicos, culturais e cristãos.
Aos
que se preparam para constituir família recomendamos o seguinte:
ü procurar conhecer os seus próprios defeitos e
qualidades e os do seu par, aprendendo a compreendê-los e a aperfeiçoar-se,
pedindo ajuda se necessário;
ü criar um projecto comum de vida familiar, pois para a
estabilidade da família não basta a atracção sentimental entre os noivos
(reflectindo, por exemplo, sobre o tempo que um (a) jovem investe na sua
instrução e qualificação profissional e o que investe na formação da sua família);
ü procurar concluir os estudos e arranjar emprego,
criando assim as condições económicas que permitam à sua família a tarefa de
prover às suas necessidades.
Às
famílias lembramos o dever de:
ü viver uma caridade activa, cultivando os valores fundamentais
da justiça, do respeito, da solidariedade, do serviço e do amparo dos mais
vulneráveis;
ü incentivar a educação cristã dos filhos, tanto na
família como na comunidade cristã, e acompanhar a orientação vocacional de cada
um, tanto no plano profissional como na orientação para a vida familiar,
religiosa ou presbiteral;
ü cultivar os valores fundamentais de justiça, respeito,
perdão e serviço;
ü na medida do possível acompanhar o crescimento físico
e afectivo dos filhos, cuidando a qualidade do tempo que passam juntos, pois
não há prendas nem dinheiro que compense o que venha a faltar em atenção e
carinho;
ü cultivar o diálogo e a reconciliação diante das
dificuldades e dos conflitos;
ü alimentar a unidade familiar das famílias cristãs
através da oração em família; ü e
particularmente, nos momentos de dor e infelicidade, procurar o reforço
efectivo e afectivo dos laços familiares, evitando situações que criem
desunião.
CONCLUSÃO
11.
Ao concluir, recordemos o apelo do Santo Padre, o Papa Bento XVI, no final da
nossa recente visita „Ad Limina Apostolorum‟: “Na verdade, os cristãos respiram o espírito do seu
tempo e sofrem a pressão dos costumes da sociedade em que vivem; mas, pela
graça do Baptismo, são chamados a renunciar às tendências nocivas imperantes e
a caminhar contra a corrente guiados pelo espírito das Bem-aventuranças”.
Tornemos
pois as nossas famílias numa escola de reconciliação, que seja fermento de paz
e amor cada vez mais alargados até incluírem todos os filhos e filhas de Angola
e S. Tomé e Príncipe.
Rogamos
a Sagrada Família de Nazaré que abençoe o esforço de reconciliação de todas as
nossas famílias e lhes dê a coragem de imitar suas virtudes.
Luanda,
17 de Novembro de 2011.
Os Bispos Católicos de Angola e S. Tomé
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