"Por Deus, tenham um blog!" Papa Bento XVI


Coragem, Levanta-te! Jesus te Chama!


terça-feira, 30 de setembro de 2025

 
A mesa da Palavra e da Eucaristia.
Não Ignoreis!
        
    A frase de São Jerônimo — “Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo” (In Isaiam, Prologus, PL 24,17); é uma das mais conhecidas do santo e continua atualíssima na vida da Igreja. Vamos aprofundar sua importância e atualidade em três pontos: bíblico, teológico e pastoral.
    A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus inspirada (2Tm 3,16), que revela o plano de salvação e encontra sua plenitude em Jesus Cristo, o Verbo encarnado (Jo 1,14). Quando São Jerônimo afirma que quem ignora as Escrituras ignora a Cristo, ele retoma a convicção dos Apóstolos: Cristo é o centro da Escritura, e sem conhecê-la não se pode conhecê-Lo verdadeiramente ( Lc 24,27).
    Cristocentrismo bíblico: toda a Escritura aponta para Cristo — o Antigo Testamento como promessa, o Novo Testamento como cumprimento.
Palavra viva: ao ler a Bíblia, não encontramos apenas textos, mas entramos em diálogo com o próprio Cristo vivo, que fala hoje à sua Igreja.
    Unidade da fé: o estudo e a meditação bíblica são indispensáveis para a vida cristã, porque sem eles a fé se torna superficial, reduzida a devoções ou costumes, mas sem raiz no encontro pessoal com Cristo.
    A frase de Jerônimo é uma advertência muito pertinente para hoje. Muitos cristãos ainda vivem um distanciamento da Palavra, limitando sua vida de fé à participação litúrgica sem aprofundamento bíblico.
    Num mundo marcado por fake news religiosas, espiritualidades superficiais e interpretações distorcidas, é urgente formar comunidades enraizadas na Escritura.
    O Papa Bento XVI, na exortação Verbum Domini (2010), retomou essa frase de São Jerônimo e reforçou: “É impossível compreender a missão da Igreja e da vida cristã sem referência à Palavra de Deus” (VD 3).
    O Papa Francisco, na Aperuit Illis (2019), instituiu o Domingo da Palavra de Deus, (3º domingo do tempo comum) para recordar que o contato com a Escritura é parte essencial da identidade cristã.
    Ignorar a Escritura é ignorar a Cristo porque não há separação entre a Palavra escrita e a Palavra viva. O cristão que não se alimenta da Bíblia corre o risco de conhecer Jesus de forma parcial ou distorcida. Por isso, hoje, mais do que nunca, é fundamental redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na catequese, na liturgia, na vida pessoal e na missão da Igreja.
    O Concílio Vaticano II ensina que, na Missa, “a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor” (Dei Verbum, 21). Isso significa que a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística formam um só banquete: Cristo se oferece na Palavra proclamada e no Pão consagrado.
    Portanto, se ignoramos as Escrituras, corremos o risco de reduzir a Missa a um rito vazio, sem compreender que é Cristo quem nos fala e nos prepara para a comunhão com Ele.
    Na celebração eucarística, a presença real de Cristo se manifesta de várias formas (Sacrosanctum Concilium, 7): na assembleia reunida, no ministro, no pão e vinho consagrados, e também na Palavra proclamada.
    A frase de Jerônimo recorda que sem acolher a Palavra, não se pode reconhecer plenamente Cristo presente na Eucaristia: primeiro Ele abre nossos ouvidos, depois parte o Pão (Lc 24,30-32).
    Para o fiel: aproximar-se da comunhão sem escutar e acolher a Palavra é viver apenas metade do mistério.
    Para a comunidade: a catequese, a homilia e os grupos bíblicos ajudam a Igreja a unir escuta e partilha, formando cristãos maduros na fé.
    Para a missão: quem se alimenta da Palavra e da Eucaristia se torna, como os discípulos de Emaús, testemunha ardorosa que leva a esperança aos irmãos.
    Na Eucaristia, a frase de São Jerônimo ganha força: sem a Escritura, não reconhecemos Cristo que se doa; sem a Eucaristia, a Escritura fica incompleta como Palavra encarnada. Ambas se iluminam mutuamente.
    Assim, viver a Missa é deixar que a Palavra prepare o coração para receber o Pão, e que o Pão consagrado nos impulsione a anunciar a Palavra.


domingo, 21 de setembro de 2025

 

Polarização e Despolarização na Eucaristia:

da Questão de Carlos, o Calvo, à Teoria da Transubstanciação

 1. Introdução

A Eucaristia, centro da vida cristã e ápice de toda a liturgia, sempre foi objeto de reflexão profunda e de debates intensos ao longo da história da Igreja. A frase aparentemente simples — “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” — usada em sermões ou catequeses, pode carregar um risco de polarização se for compreendida de modo reducionista. O exemplo dado por Andrea Grillo, ao retomar a pergunta de Carlos, o Calvo no século IX, é ilustrativo: “Na comunhão, recebemos o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”.

Essa pergunta abriu um campo de tensão. Em vez de integrar, ela opôs. A polarização surge quando se contrapõem termos que deveriam ser harmonizados: realidade versus mistério, pão versus corpo, vinho versus sangue. A teologia eucarística, ao longo de séculos, buscou superar essa oposição, elaborando a doutrina da transubstanciação como resposta despolarizada.

Este aprofundamento pretende mostrar como esse caminho se desenvolveu, quais foram seus fundamentos, seus limites e sua atualidade pastoral. Ao mesmo tempo, pretende evidenciar como a polarização pode empobrecer a compreensão da fé e como a despolarização abre horizontes para uma vivência mais autêntica do mistério eucarístico.

 2. A polarização de Carlos, o Calvo

No século IX, o rei Carlos, o Calvo (823–877), neto de Carlos Magno, levantou a questão sobre a presença de Cristo na Eucaristia: “É o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”. Essa formulação já traz em si um problema: coloca o fiel diante de uma oposição exclusiva — ou é verdade (presença real), ou é mistério (presença simbólica).

O risco dessa formulação está em reduzir a complexidade sacramental a uma escolha binária. O “mistério” não exclui a verdade, e a “verdade” não anula o mistério. Na tradição cristã primitiva, especialmente em autores como Santo Ambrósio e Santo Agostinho, os termos eram usados de modo complementar. Ambrósio, por exemplo, dizia tranquilamente que o pão é “figura” do corpo de Cristo, sem que isso significasse uma negação da presença real.

Portanto, a questão de Carlos, o Calvo, inaugura uma polarização destrutiva: exige que se escolha entre dois polos, quando a fé eucarística exige articulação e coordenação.

 3. A resposta teológica: quatro séculos de elaboração

Durante cerca de 400 anos, teólogos no Ocidente trabalharam para oferecer uma resposta adequada. A dificuldade estava em como explicar que o pão e o vinho continuam aparecendo como tais, mas são, ao mesmo tempo, o Corpo e o Sangue de Cristo.

Foi nesse contexto que amadureceu a noção de transubstanciação, consolidada no Concílio de Latrão IV (1215) e reafirmada no Concílio de Trento (século XVI). Essa doutrina buscava ser uma resposta despolarizada, evitando dizer simplesmente “é pão” ou “não é pão”.

 3.1. Conceito central

A substância do pão e do vinho se converte na substância do Corpo e do Sangue de Cristo.

As espécies ou acidentes (aparência, sabor, forma) permanecem os mesmos.

 Assim, é possível afirmar:

            É pão (no nível dos acidentes).

            Não é pão (no nível da substância).

            É Corpo de Cristo (na substância).

            Não é Corpo de Cristo (nos acidentes).

Esse raciocínio, sintetizado na expressão de Lanfranco de Pavia — “é pão e não é pão, é o mesmo corpo e não é o mesmo corpo” —, é um exemplo de tentativa de superação de polarização.

 4. A arte da despolarização

A teologia eucarística medieval mostra que o trabalho teológico muitas vezes consiste em despolarizar debates, harmonizando dimensões aparentemente opostas.

 

4.1. Distinção sem divisão

A chave foi introduzir distinções que não dividem, mas articulam:

            Substância x acidentes

            Figura x realidade

            Presença simbólica x presença real

A despolarização não elimina a tensão, mas a ordena dentro de uma visão mais ampla.

 4.2. Mistério e verdade

Dizer que a Eucaristia é “mistério” não nega sua verdade. Pelo contrário, o mistério é a maneira como a verdade de Deus se manifesta sacramentalmente. A oposição inicial de Carlos, o Calvo, era falsa. A teologia medieval mostrou que é possível afirmar simultaneamente mistério e verdade.

 5. Atualidade da questão

Apesar do desenvolvimento teológico, frases catequéticas simplificadas como “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” pode ressuscitar a polarização original.

 5.1. Problema pastoral

Essa formulação pode gerar:

            Confusão: parece negar a evidência sensível (o fiel continua vendo pão).

            Fundamentalismo: leva a um “milagre físico” em vez de um mistério sacramental.

            Perda do simbolismo: despreza a linguagem do sinal, essencial na teologia sacramental.

 5.2. Necessidade de linguagem despolarizada

É preciso recuperar uma catequese que saiba afirmar:

            A realidade da presença de Cristo.

            O valor do sinal sacramental (pão e vinho como mediações).

            A dimensão de mistério, que une verdade e simbolismo.

 6. Exemplo patrística e medieval

6.1. Santo Ambrósio

Ambrósio falava que o pão é “figura” do corpo de Cristo. Para ele, “figura” não significa mera aparência ilusória, mas sinal eficaz da realidade.

 6.2. Santo Agostinho

Agostinho via na Eucaristia um “sacramento” que realiza o que significa: pão e vinho são sinais visíveis que produzem o efeito invisível.

 6.3. São Tomás de Aquino

Tomás sistematizou a doutrina da transubstanciação, mas nunca separou realidade e sinal. Para ele, Cristo está presente de modo substancial, mas sob as espécies de pão e vinho, que conservam seu valor sacramental.

 7. Polarizações atuais e o risco de reducionismo

O tema continua atual porque a polarização não desapareceu. Ela reaparece em diferentes formas:

            1.Polarização espiritualista: ver a Eucaristia apenas como símbolo comunitário, esvaziando a presença real.

            2.Polarização fisicista: tratar a presença real como mudança material, ignorando a dimensão sacramental.

            3.Polarização pastoral: reduzir a comunhão a mero rito de devoção, sem ligação com a vida cristã.

A verdadeira fé eucarística exige superar essas reduções.

 8. Caminhos de despolarização hoje

8.1. Recuperar a linguagem sacramental

A Eucaristia não é nem pura metáfora nem pura transformação física: é sacramento, realidade nova que une sinal e graça.

 8.2. Unir liturgia e vida

O pão e o vinho são frutos da terra e do trabalho humano. Tornam-se Corpo e Sangue de Cristo, e isso compromete o fiel a viver em comunhão, partilha e serviço.

 8.3. Catequese mistagógica

Em vez de fórmulas rígidas, é preciso conduzir os fiéis ao mistério, ajudando-os a compreender a riqueza de significados da celebração eucarística.

 9. Conclusão

O exemplo da frase “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” mostra como a linguagem pode gerar polarização e reduzir o mistério eucarístico a uma contradição simplista. A história da teologia, desde a pergunta de Carlos, o Calvo, até a formulação da transubstanciação, ensina que a fé precisa de categorias despolarizadas, capazes de articular presença e sinal, verdade e mistério, pão e Corpo de Cristo.

A tarefa pastoral hoje é continuar esse esforço: falar da Eucaristia de modo que o fiel compreenda que, ao mesmo tempo em que vê pão e vinho, recebe realmente o Corpo e o Sangue de Cristo. Essa presença não anula os sinais, mas se realiza por meio deles.

A despolarização, portanto, não é concessão ao relativismo, mas caminho de fidelidade criativa ao Evangelho. Como os teólogos medievais, somos chamados a elaborar linguagens que permitam aos fiéis viver o mistério sem reduzi-lo a contradições superficiais.

A Eucaristia é pão e não é pão; é vinho e não é vinho; é Corpo e Sangue de Cristo em verdade e em mistério. Esse paradoxo não é problema, mas expressão da riqueza do sacramento, que só pode ser acolhido na fé.

O PÃO QUE VIROU AMOR

 

 










sexta-feira, 12 de setembro de 2025

 

Da Serpente de Bronze à Cruz de Cristo: do Símbolo à Plenitude da Salvação

 


O relato de Números 21,4-9, em que Deus ordena a Moisés erguer uma serpente de bronze para curar os israelitas picados por serpentes venenosas, é mais do que um episódio curioso da história do povo de Israel. Trata-se de uma revelação profunda da pedagogia divina, que transforma o símbolo da morte em sinal de vida. Esse acontecimento, interpretado pela tradição judaica e relido pela fé cristã, culmina na cruz de Cristo como plenitude da salvação.

A tradição rabínica, especialmente a Mishná (Rosh Hashaná 3,8), ensina: “A serpente não matava nem dava vida; mas, quando Israel olhava para cima e submetia o coração a Deus, eram curados; e quando desviavam os olhos, pereciam.”

Com isso, os mestres de Israel deixam claro que não havia poder mágico na serpente de bronze. O gesto de levantar os olhos não era superstição, mas um ato espiritual de conversão, uma expressão de arrependimento e confiança no Eterno.

Esse ensinamento se torna um antídoto contra a idolatria. A serpente de bronze não tinha valor em si mesma: era apenas instrumento pedagógico, um sinal que remetia ao Criador. A salvação não vinha do objeto, mas da relação com Deus. Assim, o olhar para cima simbolizava a submissão do coração e a abertura à graça que cura.

Essa interpretação rabínica mostra como Deus age de forma pedagógica: não elimina as consequências do pecado de modo imediato, mas convida à conversão interior. O veneno das serpentes representava a infidelidade do povo, e o levantar dos olhos simbolizava a necessidade de retornar ao Senhor.

A serpente, símbolo de morte e de pecado desde Gênesis 3, torna-se, por ordem de Deus, instrumento de cura. Esse paradoxo é chave para compreender a lógica divina: Deus não suprime o mal simplesmente, mas o transfigura em bem.

Esse princípio se repete em outros momentos da Escritura. José, vendido pelos irmãos, afirma no Egito: “Vós pensastes o mal contra mim, mas Deus o transformou em bem” (Gn 50,20).

Assim, o episódio da serpente de bronze ensina que Deus é capaz de transformar aquilo que parece derrota em vitória. Porém, quando o povo começa a venerar a serpente de bronze como um ídolo, séculos depois, o rei Ezequias a destrói (2Rs 18,4). Isso reforça a lição: o símbolo tem valor apenas enquanto remete a Deus; quando se torna fim em si mesmo, degenera em idolatria.

O Evangelho de João retoma diretamente esse episódio: “Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15).

Jesus interpreta a serpente de bronze como figura profética da cruz. Assim como os israelitas eram curados ao olhar para a serpente, todo aquele que contempla o Cristo crucificado com fé encontra a salvação.

Aqui está o coração da revelação cristã: a cruz, instrumento de tortura e vergonha, torna-se o novo estandarte de cura e vida. O que era sinal de condenação transforma-se em fonte de esperança. Na cruz, o mal não é simplesmente vencido, mas assumido e redimido.

São Paulo expressa essa lógica ao dizer: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1,23).

A cruz é incompreensível pela lógica humana, mas, à luz da fé, torna-se poder de Deus e sabedoria de Deus.

Assim como os israelitas precisavam levantar os olhos para a serpente, o cristão é chamado a contemplar a cruz. Esse olhar, porém, não é físico, mas espiritual: olhar com fé significa reconhecer no Crucificado a presença do Salvador, ver além da dor e enxergar a ressurreição.

Cristo “se fez pecado por nós” (2Cor 5,21). Assumiu sobre si o peso do mal, transformando-o em caminho de redenção. A cruz revela, portanto, a pedagogia divina: Deus não elimina o sofrimento por decreto, mas o assume para redimi-lo.

Contemplar a cruz é, então, um ato transformador. É reconhecer o amor radical de Deus que se entrega totalmente. Por isso, a cruz não é memória de derrota, mas sinal de vitória, não é marca de sofrimento apenas, mas de esperança.

A alegria da cura e da salvação

Imagine um israelita no deserto, ferido pelo veneno e prestes a morrer, levantar os olhos e sentir a vida retornar ao corpo. Esse gesto de fé trazia não apenas alívio físico, mas também alegria espiritual: a certeza de que Deus não havia abandonado seu povo.

De modo semelhante, o cristão que contempla a cruz experimenta uma alegria maior. Se a serpente de bronze trazia cura temporária, Cristo na cruz oferece cura definitiva e salvação eterna.

Essa alegria não é euforia passageira, mas paz profunda. É a certeza de que os pecados foram perdoados, que a morte foi vencida e que a vida eterna nos é oferecida.

Na liturgia católica, a cruz ocupa lugar central. Na Sexta-Feira Santa, ela é elevada solenemente para a adoração dos fiéis, com o canto: “Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo”. Esse gesto retoma a pedagogia bíblica: contemplar o madeiro como sinal de vida.

Também na Eucaristia, quando o sacerdote eleva a hóstia e o cálice, torna presente o mistério de Cristo elevado na cruz. Não se trata de recordar um evento passado, mas de atualizar sua eficácia salvífica.

Assim, a cruz não é um símbolo distante, mas realidade presente na vida da Igreja e dos fiéis. Ela acompanha o cristão em suas dores e em suas esperanças, sendo sinal constante do amor que salva.

A serpente de bronze foi um sinal pedagógico que apontava para algo maior. Cristo, elevado na cruz, leva esse sinal à plenitude. Assim como os israelitas precisavam olhar para cima para serem curados, também nós precisamos levantar os olhos da fé para Cristo crucificado.

Na cruz, encontramos o Deus que não apenas cura, mas redime; não apenas consola, mas salva. Ela nos recorda que o sofrimento não tem a última palavra, mas que Deus transforma a dor em esperança e a morte em vida.

Por isso, contemplar a cruz é participar da alegria da salvação. É deixar-se transformar pelo amor de Deus que se entrega. É reconhecer que, no alto do madeiro, se revela o coração do Evangelho: o amor que vence o mal e oferece vida eterna.

Assim, do deserto à cruz, a história da salvação é marcada por um gesto essencial: olhar para cima. Pois é lá, no alto da cruz, que encontramos o Deus que desceu para nos elevar.

 

 

Notas bibliográficas

  1. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Paulus, 2014. (Nm 21,4-9; Gn 50,20; 2Rs 18,4; Jo 3,14-15; Jo 12,32; 1Cor 1,23; 2Cor 5,21).
  2. Mishná, Rosh Hashaná 3,8 – Tradução e comentários em: DANBY, Herbert. The Mishnah. Oxford: Oxford University Press, 1933.
  3. RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.
  4. CONGAR, Yves. A cruz de Jesus Cristo. São Paulo: Paulus, 2000.
  5. KASPER, Walter. O mistério da cruz. São Paulo: Loyola, 1981.
  6. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo e os cristãos. São Paulo: Paulus, 1996.

 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

 

O Voto de Jefté: 

Entre a tragédia humana e a revelação do verdadeiro sacrifício.

 
O drama do voto de Jefté, destacando os momentos centrais da narrativa bíblica, o contexto histórico-religioso e o contraste entre o sacrifício humano e a revelação do verdadeiro culto em Cristo.

O episódio do voto de Jefté, narrado em Juízes 11,29-39a, é um dos relatos mais difíceis e polêmicos de toda a Sagrada Escritura. Ele nos coloca diante de uma situação desconcertante: um juiz de Israel, “movido pelo Espírito do Senhor”, promete oferecer em holocausto a primeira pessoa que sair de sua casa, caso obtenha vitória sobre os amonitas. Para sua dor, quem sai ao seu encontro é justamente sua filha única. E o texto conclui dizendo que ele cumpriu o voto. Essa narrativa levanta questões históricas, teológicas, éticas e espirituais que merecem ser aprofundadas.

1. O relato bíblico

O texto apresenta três momentos decisivos:

  1. O voto precipitado de Jefté: “Se entregares os amonitas em minhas mãos, o primeiro que sair da porta da minha casa… eu o oferecerei em holocausto” (Jz 11,30-31).
  2. A vitória concedida por Deus: Israel triunfa sobre os inimigos.
  3. O cumprimento trágico: sua filha sai ao encontro dele, com danças de alegria. Ela aceita o destino com coragem, pede apenas dois meses para chorar sua virgindade com as amigas, e Jefté cumpre o voto.

O relato termina com a lembrança de que, em Israel, as jovens faziam anualmente memória da filha de Jefté.

2. Contexto histórico e religioso

A filha de Jefté em oração. Ela representa sua aceitação corajosa do destino, com uma expressão serena e profunda, envolta em luz suave e tons terrosos que evocam espiritualidade e entrega.

O episódio deve ser compreendido dentro do período dos Juízes, tempo de instabilidade social e religiosa. Não havia ainda uma monarquia unificada; cada tribo vivia quase isolada, exposta às pressões militares e culturais dos povos vizinhos (moabitas, amonitas, cananeus).

Nesse ambiente, o sincretismo religioso era frequente. As práticas de sacrifício humano eram conhecidas entre os povos da região, especialmente nas religiões que cultuavam Moloc, às quais se atribuía a exigência de oferendas de crianças.

A Lei de Israel, porém, era clara: Javé rejeitava esse tipo de prática. Textos como Levítico 18,21 e Deuteronômio 12,31 proíbem explicitamente sacrificar filhos em holocausto. O próprio relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) mostra que Deus não deseja sangue humano, mas fidelidade da fé.

A história de Jefté, portanto, reflete uma tensão real: o povo eleito, chamado a uma fé pura em Javé, muitas vezes se deixava contaminar por costumes pagãos.

3. O sentido literário e teológico

É fundamental notar que o texto não apresenta Deus exigindo o voto nem aprovando o sacrifício. Trata-se de uma iniciativa precipitada de Jefté, fruto de zelo mal orientado.

Assim, o episódio funciona como narrativa de advertência: mostra até onde pode levar uma religiosidade marcada por fanatismo e falta de discernimento. Jefté, ao invés de confiar simplesmente na promessa de Deus, tenta “negociar” a vitória com uma promessa absurda.

Alguns estudiosos levantam a hipótese de que a filha não tenha sido imolada, mas apenas consagrada ao celibato, vivendo no templo em virgindade perpétua. Essa leitura encontra apoio no fato de ela lamentar não a morte em si, mas a virgindade perdida (Jz 11,37-38). No entanto, a maior parte dos exegetas considera que o texto, lido literalmente, fala de um sacrifício humano real.

Seja como for, a intenção do autor bíblico parece ser denunciar a consequência dramática de um voto precipitado e da contaminação com práticas pagãs.

4. A controvérsia ética

Jefté olhando para sua filha — um momento carregado de dor, amor e resignação. A expressão de Jefté revela o peso do voto precipitado, enquanto sua filha, com olhar sereno e triste, parece aceitar seu destino.

O problema que mais incomoda os leitores é: como um juiz de Israel, revestido do Espírito do Senhor (v. 29), poderia realizar algo que contraria a Lei de Deus?

A resposta pode ser buscada em dois pontos:

  1. O Espírito do Senhor atua para conceder a vitória militar, não para inspirar o voto. O voto é uma decisão humana, marcada por fraqueza e ignorância.
  2. O livro dos Juízes, em geral, apresenta a vida religiosa de Israel como degradada. A frase final da obra resume bem: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava melhor” (Jz 21,25). O sacrifício de Jefté, então, é mais um sintoma dessa crise espiritual.

5. Atualidade da narrativa

Apesar de distante de nossa realidade, a história de Jefté carrega mensagens muito atuais.

  • Religiosidade distorcida: quando a fé se mistura com práticas supersticiosas, promessas vazias ou fanatismo, gera sofrimento e morte, em vez de vida. Quantos ainda hoje fazem promessas a Deus movidos por medo, barganha ou desespero, e depois sofrem as consequências!
  • Deus não pede sacrifícios humanos: a revelação bíblica deixa claro que o culto agradável a Javé não é o sangue, mas a vida entregue no amor. O profeta Oséias já dizia: “Quero misericórdia, e não sacrifício” (Os 6,6).
  • Discernimento vocacional: a filha de Jefté, em algumas leituras, teria sido dedicada a uma vida de virgindade. Isso nos faz refletir sobre a importância de escolhas feitas com liberdade e não impostas por votos impensados ou pressões externas.

6. O cumprimento em Cristo

Ela mostra Jesus crucificado com profundidade emocional e espiritual, iluminado por uma luz dourada que contrasta com o fundo sombrio — revelando que, mesmo na dor, há redenção. A presença do cálice e da hóstia no primeiro plano conecta diretamente à Eucaristia, sinal do sacrifício que traz vida.

O voto de Jefté trouxe morte e luto. Mas a história bíblica avança para mostrar que o único sacrifício que agrada a Deus é o de Cristo.

Jesus não foi oferecido por voto precipitado, mas se entregou livremente por amor, em obediência ao Pai e para a salvação da humanidade. A cruz, que poderia ser vista como sinal de derrota, torna-se a plenitude da vida.

Na Eucaristia, celebramos justamente essa oferta: não um culto de morte, mas a presença de Cristo que se dá como alimento de vida eterna. É o “sacrifício da nova aliança”, que substitui todos os sacrifícios antigos.

7. Lições para hoje

Da história de Jefté podemos extrair três grandes ensinamentos:

  1. Evitar promessas vazias: Deus não precisa de votos mirabolantes, mas de um coração sincero que viva a fé no cotidiano.
  2. Discernir a vontade de Deus: a autêntica religião não é fanatismo nem superstição, mas escuta da Palavra e prática da misericórdia.
  3. Viver do sacrifício de Cristo: só Jesus é o verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo. Nele encontramos vida em abundância.

 

O episódio do voto de Jefté continua sendo um texto desconcertante, mas profundamente pedagógico. Ele mostra até onde pode levar a mistura entre fé e superstição, e ao mesmo tempo prepara o caminho para a revelação plena em Cristo.

O voto humano precipitado trouxe morte e luto; o sacrifício de Jesus trouxe vida e esperança. É essa esperança que alimenta a nossa fé e que celebramos em cada Eucaristia: Deus não deseja a morte de ninguém, mas a vida de todos.

Assim, diante do altar, aprendemos que o verdadeiro culto é viver a fé no amor, oferecer a própria vida como dom, e caminhar como discípulos daquele que é o único sacrifício que salva.

 

 Referências:

  • Bíblia de Jerusalém, nota a Jz 11,30-40.
  • Roland de Vaux, Instituições de Israel.
  • Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento.
  • Catecismo da Igreja Católica, nn. 2099-2100.

sábado, 26 de julho de 2025


 

Oração na vida cristã e na liderança pastoral.


“Rezemos para que cada um de nós encontre consolo na relação pessoal com Jesus e aprenda do seu Coração a compaixão pelo mundo.” Papa Leão XIV


     A oração é o fio invisível, mas inquebrantável, que sustenta a vida cristã. É nela que o discípulo escuta, responde e se conforma à vontade do Pai. Para os que exercem qualquer serviço na Igreja coordenadores, animadores, ministros, catequistas, missionários — a oração não é acessório, mas raiz. Ela não apenas nutre a interioridade, mas configura o ser do líder a Cristo Servo, por meio da comunhão com Deus.
    Diferentes métodos de oração foram se desenvolvendo na vida da Igreja, não como técnicas rígidas, mas como caminhos oferecidos pelo Espírito para que cada fiel encontre a forma mais profunda e verdadeira de entrar em comunhão com Deus. A seguir, aprofundamos o sentido e a importância de cada um desses métodos na espiritualidade pessoal e no serviço pastoral.


 1. Oração Litúrgica
a) A Santa Missa
A Eucaristia é, como afirma o Concílio Vaticano II, “fonte e cume de toda a vida cristã” (LG 11). Essa afirmação sintetiza a centralidade da Missa: nela, todo o ser cristão nasce, cresce, se alimenta e se orienta. Participar da Missa não é apenas cumprir um preceito, mas renovar-se na escuta da Palavra e na partilha do Corpo e Sangue do Senhor.
Para o líder pastoral, viver da Eucaristia significa deixar-se formar por ela. A Missa ensina o dinamismo do dom de si, do serviço, do perdão e da comunhão. Quem preside, canta, proclama, acolhe ou serve na liturgia deve fazê-lo com o coração configurado ao de Cristo. Assim, a Missa torna-se alimento interior e referência para toda missão e discernimento.
b) Liturgia das Horas
Chamada de “oração pública da Igreja”, a Liturgia das Horas santifica o tempo com a Palavra de Deus e a oração da comunidade. Suas principais horas (Laudes pela manhã, Vésperas ao entardecer e Completas à noite) formam um ciclo espiritual que insere o orante no louvor constante da Igreja universal.
Para os líderes, este método educa na escuta orante da Escritura, na comunhão com a Igreja e na interiorização do louvor e da súplica. Mesmo quando rezada individualmente, é sempre comunitária por natureza. É recomendável que grupos pastorais iniciem encontros com uma hora litúrgica — gesto que une, forma e eleva o espírito à presença de Deus.


 2. Oração Bíblica (Lectio Divina)
A Lectio Divina é um método milenar de leitura orante da Bíblia. Mais do que estudar, trata-se de escutar a Palavra com o coração e deixar-se transformar por ela. Suas cinco etapas — lectio, meditatio, oratio, contemplatio e actio — formam um caminho de encontro vital com Deus.
  • Lectio: a leitura atenta e respeitosa do texto bíblico, que busca compreender o que está escrito.
  • Meditatio: a meditação pessoal sobre o que Deus quer dizer à vida concreta.
  • Oratio: a resposta amorosa, feita em forma de oração, súplica, louvor ou entrega.
  • Contemplatio: o repouso silencioso na presença de Deus, permitindo que Ele fale ao coração.
  • Actio: o compromisso concreto que nasce da escuta: conversão, caridade, serviço.
  • Educa a humildade, pois reconhece nossa dependência e pobreza espiritual.
  • Favorece o recolhimento interior, mesmo no meio das atividades.
  • Cria um estado constante de invocação e atenção à presença de Deus.
Esse método é especialmente valioso na formação de líderes, pois une espiritualidade, discernimento e ação. Nos grupos de reflexão, nos retiros e na vida cotidiana do cristão, a Lectio Divina torna-se um espaço de verdadeira transformação.


 3. Oração do Coração
    Inspirada nos Padres do Deserto e muito presente na espiritualidade oriental, a Oração do Coração consiste na repetição contínua de uma invocação simples, como: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.” O objetivo não é a repetição mecânica, mas a unificação do ser diante de Deus.
Essa oração:
    Para líderes sobrecarregados, essa forma breve e profunda de oração é um refúgio e uma âncora no cotidiano. Ela pode ser rezada durante o dia, no silêncio do coração, oferecendo o momento presente ao Senhor.

4. Oração de Intercessão
    Interceder é colocar-se na brecha entre Deus e os irmãos, como fez Moisés pelo povo (Ex 32,11-14) e como Jesus intercede por nós (Rm 8,34). O líder cristão, por vocação, é intercessor. Rezar pelas pessoas, pelas necessidades da paróquia, pelas dores da comunidade, é sinal de amor pastoral.
A intercessão pode ser:
  • Espontânea: oração livre, feita com o coração e com palavras próprias.
  • Guiada: por meio do Rosário, ladainhas, súplicas litânicas e orações da tradição da Igreja.
    Essa forma de oração enraíza o serviço pastoral na compaixão e na solidariedade espiritual. É também uma expressão de maturidade cristã: sair de si para levar os outros a Deus.


 5. Oração Mariana
    O Terço e o Rosário são formas acessíveis e profundas de oração que conduzem à contemplação dos mistérios da vida de Cristo à luz de Maria. Ao rezar os mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos e luminosos, o orante mergulha na encarnação, paixão, ressurreição e missão de Jesus.
    Maria é modelo de oração silenciosa, confiante e perseverante. Ela “guardava tudo no coração” (Lc 2,19). Por isso, o líder que se consagra à oração mariana aprende:
  • A escutar com profundidade.
  • A manter-se firme na fé, mesmo sem compreender tudo.
  • A contemplar a ação de Deus nos detalhes da vida.
    O Terço, muitas vezes considerado simples, é, na verdade, uma poderosa escola de oração contemplativa e missionária.


 6. Oração de Louvor e Gratidão
    Louvar a Deus é reconhecê-lo como Senhor da história, mesmo nos momentos difíceis. O louvor desarma a murmuração, liberta da tristeza e abre o coração para a esperança. Ele nos educa a ver além das circunstâncias e a confiar plenamente na Providência.
O louvor:
  • É expressão de alegria e de confiança.
  • Fortalece a comunidade e a espiritualidade comum.
  • Liberta o orante do egoísmo e do pessimismo.
    Embora muito presente em grupos carismáticos, essa forma de oração é essencial a todos. Um grupo pastoral que reza agradecendo, canta junto e louva ao Senhor torna-se mais unido, alegre e perseverante.


 7. Oração Contemplativa
    Na oração contemplativa, o coração se cala. Não há muitas palavras, mas presença. É a oração do “estar com”, do repousar em Deus, como quem se deita no colo do Pai. Muitas vezes vivida na Adoração Eucarística, ela é também possível no silêncio do quarto ou na natureza.
Essa oração:
  • Aprofunda o vínculo íntimo com Deus.
  • Ajuda no discernimento e na pacificação interior.
  • É fonte de luz para a ação pastoral.
    A contemplação não é privilégio de monges, mas necessidade de todos os que servem. Quem não silencia diante de Deus, corre o risco de agir em nome próprio e não no Espírito.



 8. Oração Comunitária
    A oração em grupo expressa o ser eclesial da fé. Jesus prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18,20). A oração comunitária alimenta a unidade, reforça o sentimento de pertença e educa o povo a rezar juntos.
Ela deve ser:
  • Preparada com zelo: cuidando das leituras, cantos, intenções.
  • Aberta à participação: cada um deve sentir-se acolhido.
  • Pedagógica: com momentos de silêncio, louvor, súplica e escuta.
    O líder deve aprender a rezar com o povo e diante do povo. Isso exige coerência de vida: não se ensina a rezar com discursos, mas com a própria oração.
 Orar como Líder, Orar como Cristão
    A diversidade de métodos de oração não é dispersão, mas riqueza. Cada um deles revela uma face da relação com Deus: louvor, escuta, silêncio, intercessão, contemplação, gratidão, comunhão. O importante é que a oração seja verdadeira, feita com o coração, em espírito e em verdade.
    Um líder que reza é sinal de esperança para o povo. Ele não busca técnicas, mas intimidade com o Senhor. Ele não reza para ter poder, mas para permanecer no serviço. Ele não ora por obrigação, mas porque descobriu na oração o segredo do amor e da missão.


 “A oração é o primeiro ato missionário do cristão.” Papa Francisco
 

Que todos os que servem na Igreja façam da oração a alma do seu ministério, da sua liderança e da sua vida.