Da Serpente de Bronze à Cruz de Cristo: do Símbolo à Plenitude da Salvação
O relato de Números 21,4-9, em que Deus ordena a Moisés erguer uma serpente de bronze para curar os israelitas picados por serpentes venenosas, é mais do que um episódio curioso da história do povo de Israel. Trata-se de uma revelação profunda da pedagogia divina, que transforma o símbolo da morte em sinal de vida. Esse acontecimento, interpretado pela tradição judaica e relido pela fé cristã, culmina na cruz de Cristo como plenitude da salvação.
A
tradição rabínica, especialmente a Mishná (Rosh Hashaná 3,8), ensina: “A
serpente não matava nem dava vida; mas, quando Israel olhava para cima e
submetia o coração a Deus, eram curados; e quando desviavam os olhos,
pereciam.”
Com
isso, os mestres de Israel deixam claro que não havia poder mágico na serpente
de bronze. O gesto de levantar os olhos não era superstição, mas um ato
espiritual de conversão, uma expressão de arrependimento e confiança no
Eterno.
Esse
ensinamento se torna um antídoto contra a idolatria. A serpente de
bronze não tinha valor em si mesma: era apenas instrumento pedagógico, um sinal
que remetia ao Criador. A salvação não vinha do objeto, mas da relação com
Deus. Assim, o olhar para cima simbolizava a submissão do coração e a abertura
à graça que cura.
Essa
interpretação rabínica mostra como Deus age de forma pedagógica: não elimina as
consequências do pecado de modo imediato, mas convida à conversão interior. O
veneno das serpentes representava a infidelidade do povo, e o levantar dos
olhos simbolizava a necessidade de retornar ao Senhor.
A
serpente, símbolo de morte e de pecado desde Gênesis 3, torna-se, por ordem de
Deus, instrumento de cura. Esse paradoxo é chave para compreender a lógica
divina: Deus não suprime o mal simplesmente, mas o transfigura em bem.
Esse
princípio se repete em outros momentos da Escritura. José, vendido pelos
irmãos, afirma no Egito: “Vós pensastes o mal contra mim, mas Deus o
transformou em bem” (Gn 50,20).
Assim,
o episódio da serpente de bronze ensina que Deus é capaz de transformar aquilo
que parece derrota em vitória. Porém, quando o povo começa a venerar a serpente
de bronze como um ídolo, séculos depois, o rei Ezequias a destrói (2Rs 18,4).
Isso reforça a lição: o símbolo tem valor apenas enquanto remete a Deus; quando
se torna fim em si mesmo, degenera em idolatria.
O
Evangelho de João retoma diretamente esse episódio: “Assim como Moisés levantou
a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado,
para que todo o que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15).
Jesus
interpreta a serpente de bronze como figura profética da cruz. Assim
como os israelitas eram curados ao olhar para a serpente, todo aquele que
contempla o Cristo crucificado com fé encontra a salvação.
Aqui
está o coração da revelação cristã: a cruz, instrumento de tortura e vergonha,
torna-se o novo estandarte de cura e vida. O que era sinal de condenação
transforma-se em fonte de esperança. Na cruz, o mal não é simplesmente vencido,
mas assumido e redimido.
São
Paulo expressa essa lógica ao dizer: “Nós pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1,23).
A
cruz é incompreensível pela lógica humana, mas, à luz da fé, torna-se poder
de Deus e sabedoria de Deus.
Assim
como os israelitas precisavam levantar os olhos para a serpente, o cristão é
chamado a contemplar a cruz. Esse olhar, porém, não é físico, mas
espiritual: olhar com fé significa reconhecer no Crucificado a presença do
Salvador, ver além da dor e enxergar a ressurreição.
Cristo
“se fez pecado por nós” (2Cor 5,21). Assumiu sobre si o peso do mal,
transformando-o em caminho de redenção. A cruz revela, portanto, a pedagogia
divina: Deus não elimina o sofrimento por decreto, mas o assume para redimi-lo.
Contemplar
a cruz é, então, um ato transformador. É reconhecer o amor radical de Deus que
se entrega totalmente. Por isso, a cruz não é memória de derrota, mas sinal de
vitória, não é marca de sofrimento apenas, mas de esperança.
Imagine
um israelita no deserto, ferido pelo veneno e prestes a morrer, levantar os
olhos e sentir a vida retornar ao corpo. Esse gesto de fé trazia não apenas
alívio físico, mas também alegria espiritual: a certeza de que Deus não havia
abandonado seu povo.
De
modo semelhante, o cristão que contempla a cruz experimenta uma alegria maior.
Se a serpente de bronze trazia cura temporária, Cristo na cruz oferece cura
definitiva e salvação eterna.
Essa
alegria não é euforia passageira, mas paz profunda. É a certeza de que os
pecados foram perdoados, que a morte foi vencida e que a vida eterna nos é
oferecida.
Na
liturgia católica, a cruz ocupa lugar central. Na Sexta-Feira Santa, ela
é elevada solenemente para a adoração dos fiéis, com o canto: “Eis o lenho
da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo”. Esse gesto retoma a pedagogia
bíblica: contemplar o madeiro como sinal de vida.
Também
na Eucaristia, quando o sacerdote eleva a hóstia e o cálice, torna presente o
mistério de Cristo elevado na cruz. Não se trata de recordar um evento passado,
mas de atualizar sua eficácia salvífica.
Assim,
a cruz não é um símbolo distante, mas realidade presente na vida da Igreja e
dos fiéis. Ela acompanha o cristão em suas dores e em suas esperanças, sendo
sinal constante do amor que salva.
A
serpente de bronze foi um sinal pedagógico que apontava para algo maior.
Cristo, elevado na cruz, leva esse sinal à plenitude. Assim como os israelitas
precisavam olhar para cima para serem curados, também nós precisamos levantar
os olhos da fé para Cristo crucificado.
Na
cruz, encontramos o Deus que não apenas cura, mas redime; não apenas consola,
mas salva. Ela nos recorda que o sofrimento não tem a última palavra, mas que
Deus transforma a dor em esperança e a morte em vida.
Por
isso, contemplar a cruz é participar da alegria da salvação. É deixar-se
transformar pelo amor de Deus que se entrega. É reconhecer que, no alto do
madeiro, se revela o coração do Evangelho: o amor que vence o mal e oferece
vida eterna.
Assim,
do deserto à cruz, a história da salvação é marcada por um gesto essencial: olhar
para cima. Pois é lá, no alto da cruz, que encontramos o Deus que desceu
para nos elevar.
Notas
bibliográficas
- Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Paulus,
2014. (Nm 21,4-9; Gn 50,20; 2Rs 18,4; Jo 3,14-15; Jo 12,32; 1Cor 1,23;
2Cor 5,21).
- Mishná, Rosh Hashaná 3,8 – Tradução e comentários em:
DANBY, Herbert. The Mishnah. Oxford: Oxford University Press, 1933.
- RATZINGER, Joseph (Bento XVI).
Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.
- CONGAR, Yves. A cruz de
Jesus Cristo. São Paulo: Paulus, 2000.
- KASPER, Walter. O mistério
da cruz. São Paulo: Loyola, 1981.
- SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo
e os cristãos. São Paulo: Paulus, 1996.
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