Polarização
e Despolarização na Eucaristia:
da
Questão de Carlos, o Calvo, à Teoria da Transubstanciação
A
Eucaristia, centro da vida cristã e ápice de toda a liturgia, sempre foi objeto
de reflexão profunda e de debates intensos ao longo da história da Igreja. A
frase aparentemente simples — “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” — usada
em sermões ou catequeses, pode carregar um risco de polarização se for
compreendida de modo reducionista. O exemplo dado por Andrea Grillo, ao retomar
a pergunta de Carlos, o Calvo no século IX, é ilustrativo: “Na comunhão,
recebemos o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”.
Essa
pergunta abriu um campo de tensão. Em vez de integrar, ela opôs. A polarização
surge quando se contrapõem termos que deveriam ser harmonizados: realidade
versus mistério, pão versus corpo, vinho versus sangue. A teologia eucarística,
ao longo de séculos, buscou superar essa oposição, elaborando a doutrina da
transubstanciação como resposta despolarizada.
Este
aprofundamento pretende mostrar como esse caminho se desenvolveu, quais foram
seus fundamentos, seus limites e sua atualidade pastoral. Ao mesmo tempo,
pretende evidenciar como a polarização pode empobrecer a compreensão da fé e
como a despolarização abre horizontes para uma vivência mais autêntica do
mistério eucarístico.
No
século IX, o rei Carlos, o Calvo (823–877), neto de Carlos Magno, levantou a
questão sobre a presença de Cristo na Eucaristia: “É o corpo e o sangue de
Cristo em verdade ou em mistério?”. Essa formulação já traz em si um problema:
coloca o fiel diante de uma oposição exclusiva — ou é verdade (presença real),
ou é mistério (presença simbólica).
O
risco dessa formulação está em reduzir a complexidade sacramental a uma escolha
binária. O “mistério” não exclui a verdade, e a “verdade” não anula o mistério.
Na tradição cristã primitiva, especialmente em autores como Santo Ambrósio e
Santo Agostinho, os termos eram usados de modo complementar. Ambrósio, por
exemplo, dizia tranquilamente que o pão é “figura” do corpo de Cristo, sem que
isso significasse uma negação da presença real.
Portanto,
a questão de Carlos, o Calvo, inaugura uma polarização destrutiva: exige que se
escolha entre dois polos, quando a fé eucarística exige articulação e
coordenação.
Durante
cerca de 400 anos, teólogos no Ocidente trabalharam para oferecer uma resposta
adequada. A dificuldade estava em como explicar que o pão e o vinho continuam
aparecendo como tais, mas são, ao mesmo tempo, o Corpo e o Sangue de Cristo.
Foi
nesse contexto que amadureceu a noção de transubstanciação, consolidada no
Concílio de Latrão IV (1215) e reafirmada no Concílio de Trento (século XVI).
Essa doutrina buscava ser uma resposta despolarizada, evitando dizer
simplesmente “é pão” ou “não é pão”.
A substância do pão e
do vinho se converte na substância do Corpo e do Sangue de Cristo.
As espécies ou
acidentes (aparência, sabor, forma) permanecem os mesmos.
É pão (no nível dos acidentes).
Não é pão (no nível da substância).
É Corpo de Cristo (na substância).
Não é Corpo de Cristo (nos
acidentes).
Esse raciocínio,
sintetizado na expressão de Lanfranco de Pavia — “é pão e não é pão, é o mesmo
corpo e não é o mesmo corpo” —, é um exemplo de tentativa de superação de
polarização.
A teologia
eucarística medieval mostra que o trabalho teológico muitas vezes consiste em
despolarizar debates, harmonizando dimensões aparentemente opostas.
4.1. Distinção sem
divisão
A chave foi
introduzir distinções que não dividem, mas articulam:
Substância x acidentes
Figura x realidade
Presença simbólica x presença real
A despolarização não
elimina a tensão, mas a ordena dentro de uma visão mais ampla.
Dizer
que a Eucaristia é “mistério” não nega sua verdade. Pelo contrário, o mistério
é a maneira como a verdade de Deus se manifesta sacramentalmente. A oposição
inicial de Carlos, o Calvo, era falsa. A teologia medieval mostrou que é
possível afirmar simultaneamente mistério e verdade.
Apesar
do desenvolvimento teológico, frases catequéticas simplificadas como “Isto não
é pão, mas o Corpo de Cristo” pode ressuscitar a polarização original.
Essa formulação pode
gerar:
Confusão: parece negar a evidência
sensível (o fiel continua vendo pão).
Fundamentalismo: leva a um “milagre
físico” em vez de um mistério sacramental.
Perda do simbolismo: despreza a
linguagem do sinal, essencial na teologia sacramental.
É preciso recuperar
uma catequese que saiba afirmar:
A realidade da presença de Cristo.
O valor do sinal sacramental (pão e
vinho como mediações).
A dimensão de mistério, que une
verdade e simbolismo.
6.1. Santo Ambrósio
Ambrósio falava que o
pão é “figura” do corpo de Cristo. Para ele, “figura” não significa mera
aparência ilusória, mas sinal eficaz da realidade.
Agostinho
via na Eucaristia um “sacramento” que realiza o que significa: pão e vinho são
sinais visíveis que produzem o efeito invisível.
Tomás
sistematizou a doutrina da transubstanciação, mas nunca separou realidade e
sinal. Para ele, Cristo está presente de modo substancial, mas sob as espécies
de pão e vinho, que conservam seu valor sacramental.
O tema continua atual
porque a polarização não desapareceu. Ela reaparece em diferentes formas:
1.Polarização espiritualista: ver a
Eucaristia apenas como símbolo comunitário, esvaziando a presença real.
2.Polarização fisicista: tratar a
presença real como mudança material, ignorando a dimensão sacramental.
3.Polarização pastoral: reduzir a
comunhão a mero rito de devoção, sem ligação com a vida cristã.
A verdadeira fé
eucarística exige superar essas reduções.
8.1. Recuperar a
linguagem sacramental
A
Eucaristia não é nem pura metáfora nem pura transformação física: é sacramento,
realidade nova que une sinal e graça.
O pão e o vinho são
frutos da terra e do trabalho humano. Tornam-se Corpo e Sangue de Cristo, e
isso compromete o fiel a viver em comunhão, partilha e serviço.
Em
vez de fórmulas rígidas, é preciso conduzir os fiéis ao mistério, ajudando-os a
compreender a riqueza de significados da celebração eucarística.
O
exemplo da frase “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” mostra como a
linguagem pode gerar polarização e reduzir o mistério eucarístico a uma
contradição simplista. A história da teologia, desde a pergunta de Carlos, o
Calvo, até a formulação da transubstanciação, ensina que a fé precisa de
categorias despolarizadas, capazes de articular presença e sinal, verdade e
mistério, pão e Corpo de Cristo.
A
tarefa pastoral hoje é continuar esse esforço: falar da Eucaristia de modo que
o fiel compreenda que, ao mesmo tempo em que vê pão e vinho, recebe realmente o
Corpo e o Sangue de Cristo. Essa presença não anula os sinais, mas se realiza
por meio deles.
A
despolarização, portanto, não é concessão ao relativismo, mas caminho de
fidelidade criativa ao Evangelho. Como os teólogos medievais, somos chamados a
elaborar linguagens que permitam aos fiéis viver o mistério sem reduzi-lo a
contradições superficiais.
A
Eucaristia é pão e não é pão; é vinho e não é vinho; é Corpo e Sangue de Cristo
em verdade e em mistério. Esse paradoxo não é problema, mas expressão da
riqueza do sacramento, que só pode ser acolhido na fé.
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