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domingo, 21 de setembro de 2025

 

Polarização e Despolarização na Eucaristia:

da Questão de Carlos, o Calvo, à Teoria da Transubstanciação

 1. Introdução

A Eucaristia, centro da vida cristã e ápice de toda a liturgia, sempre foi objeto de reflexão profunda e de debates intensos ao longo da história da Igreja. A frase aparentemente simples — “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” — usada em sermões ou catequeses, pode carregar um risco de polarização se for compreendida de modo reducionista. O exemplo dado por Andrea Grillo, ao retomar a pergunta de Carlos, o Calvo no século IX, é ilustrativo: “Na comunhão, recebemos o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”.

Essa pergunta abriu um campo de tensão. Em vez de integrar, ela opôs. A polarização surge quando se contrapõem termos que deveriam ser harmonizados: realidade versus mistério, pão versus corpo, vinho versus sangue. A teologia eucarística, ao longo de séculos, buscou superar essa oposição, elaborando a doutrina da transubstanciação como resposta despolarizada.

Este aprofundamento pretende mostrar como esse caminho se desenvolveu, quais foram seus fundamentos, seus limites e sua atualidade pastoral. Ao mesmo tempo, pretende evidenciar como a polarização pode empobrecer a compreensão da fé e como a despolarização abre horizontes para uma vivência mais autêntica do mistério eucarístico.

 2. A polarização de Carlos, o Calvo

No século IX, o rei Carlos, o Calvo (823–877), neto de Carlos Magno, levantou a questão sobre a presença de Cristo na Eucaristia: “É o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”. Essa formulação já traz em si um problema: coloca o fiel diante de uma oposição exclusiva — ou é verdade (presença real), ou é mistério (presença simbólica).

O risco dessa formulação está em reduzir a complexidade sacramental a uma escolha binária. O “mistério” não exclui a verdade, e a “verdade” não anula o mistério. Na tradição cristã primitiva, especialmente em autores como Santo Ambrósio e Santo Agostinho, os termos eram usados de modo complementar. Ambrósio, por exemplo, dizia tranquilamente que o pão é “figura” do corpo de Cristo, sem que isso significasse uma negação da presença real.

Portanto, a questão de Carlos, o Calvo, inaugura uma polarização destrutiva: exige que se escolha entre dois polos, quando a fé eucarística exige articulação e coordenação.

 3. A resposta teológica: quatro séculos de elaboração

Durante cerca de 400 anos, teólogos no Ocidente trabalharam para oferecer uma resposta adequada. A dificuldade estava em como explicar que o pão e o vinho continuam aparecendo como tais, mas são, ao mesmo tempo, o Corpo e o Sangue de Cristo.

Foi nesse contexto que amadureceu a noção de transubstanciação, consolidada no Concílio de Latrão IV (1215) e reafirmada no Concílio de Trento (século XVI). Essa doutrina buscava ser uma resposta despolarizada, evitando dizer simplesmente “é pão” ou “não é pão”.

 3.1. Conceito central

A substância do pão e do vinho se converte na substância do Corpo e do Sangue de Cristo.

As espécies ou acidentes (aparência, sabor, forma) permanecem os mesmos.

 Assim, é possível afirmar:

            É pão (no nível dos acidentes).

            Não é pão (no nível da substância).

            É Corpo de Cristo (na substância).

            Não é Corpo de Cristo (nos acidentes).

Esse raciocínio, sintetizado na expressão de Lanfranco de Pavia — “é pão e não é pão, é o mesmo corpo e não é o mesmo corpo” —, é um exemplo de tentativa de superação de polarização.

 4. A arte da despolarização

A teologia eucarística medieval mostra que o trabalho teológico muitas vezes consiste em despolarizar debates, harmonizando dimensões aparentemente opostas.

 

4.1. Distinção sem divisão

A chave foi introduzir distinções que não dividem, mas articulam:

            Substância x acidentes

            Figura x realidade

            Presença simbólica x presença real

A despolarização não elimina a tensão, mas a ordena dentro de uma visão mais ampla.

 4.2. Mistério e verdade

Dizer que a Eucaristia é “mistério” não nega sua verdade. Pelo contrário, o mistério é a maneira como a verdade de Deus se manifesta sacramentalmente. A oposição inicial de Carlos, o Calvo, era falsa. A teologia medieval mostrou que é possível afirmar simultaneamente mistério e verdade.

 5. Atualidade da questão

Apesar do desenvolvimento teológico, frases catequéticas simplificadas como “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” pode ressuscitar a polarização original.

 5.1. Problema pastoral

Essa formulação pode gerar:

            Confusão: parece negar a evidência sensível (o fiel continua vendo pão).

            Fundamentalismo: leva a um “milagre físico” em vez de um mistério sacramental.

            Perda do simbolismo: despreza a linguagem do sinal, essencial na teologia sacramental.

 5.2. Necessidade de linguagem despolarizada

É preciso recuperar uma catequese que saiba afirmar:

            A realidade da presença de Cristo.

            O valor do sinal sacramental (pão e vinho como mediações).

            A dimensão de mistério, que une verdade e simbolismo.

 6. Exemplo patrística e medieval

6.1. Santo Ambrósio

Ambrósio falava que o pão é “figura” do corpo de Cristo. Para ele, “figura” não significa mera aparência ilusória, mas sinal eficaz da realidade.

 6.2. Santo Agostinho

Agostinho via na Eucaristia um “sacramento” que realiza o que significa: pão e vinho são sinais visíveis que produzem o efeito invisível.

 6.3. São Tomás de Aquino

Tomás sistematizou a doutrina da transubstanciação, mas nunca separou realidade e sinal. Para ele, Cristo está presente de modo substancial, mas sob as espécies de pão e vinho, que conservam seu valor sacramental.

 7. Polarizações atuais e o risco de reducionismo

O tema continua atual porque a polarização não desapareceu. Ela reaparece em diferentes formas:

            1.Polarização espiritualista: ver a Eucaristia apenas como símbolo comunitário, esvaziando a presença real.

            2.Polarização fisicista: tratar a presença real como mudança material, ignorando a dimensão sacramental.

            3.Polarização pastoral: reduzir a comunhão a mero rito de devoção, sem ligação com a vida cristã.

A verdadeira fé eucarística exige superar essas reduções.

 8. Caminhos de despolarização hoje

8.1. Recuperar a linguagem sacramental

A Eucaristia não é nem pura metáfora nem pura transformação física: é sacramento, realidade nova que une sinal e graça.

 8.2. Unir liturgia e vida

O pão e o vinho são frutos da terra e do trabalho humano. Tornam-se Corpo e Sangue de Cristo, e isso compromete o fiel a viver em comunhão, partilha e serviço.

 8.3. Catequese mistagógica

Em vez de fórmulas rígidas, é preciso conduzir os fiéis ao mistério, ajudando-os a compreender a riqueza de significados da celebração eucarística.

 9. Conclusão

O exemplo da frase “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” mostra como a linguagem pode gerar polarização e reduzir o mistério eucarístico a uma contradição simplista. A história da teologia, desde a pergunta de Carlos, o Calvo, até a formulação da transubstanciação, ensina que a fé precisa de categorias despolarizadas, capazes de articular presença e sinal, verdade e mistério, pão e Corpo de Cristo.

A tarefa pastoral hoje é continuar esse esforço: falar da Eucaristia de modo que o fiel compreenda que, ao mesmo tempo em que vê pão e vinho, recebe realmente o Corpo e o Sangue de Cristo. Essa presença não anula os sinais, mas se realiza por meio deles.

A despolarização, portanto, não é concessão ao relativismo, mas caminho de fidelidade criativa ao Evangelho. Como os teólogos medievais, somos chamados a elaborar linguagens que permitam aos fiéis viver o mistério sem reduzi-lo a contradições superficiais.

A Eucaristia é pão e não é pão; é vinho e não é vinho; é Corpo e Sangue de Cristo em verdade e em mistério. Esse paradoxo não é problema, mas expressão da riqueza do sacramento, que só pode ser acolhido na fé.

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