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terça-feira, 30 de setembro de 2025
domingo, 21 de setembro de 2025
Polarização
e Despolarização na Eucaristia: 
da
Questão de Carlos, o Calvo, à Teoria da Transubstanciação
A
Eucaristia, centro da vida cristã e ápice de toda a liturgia, sempre foi objeto
de reflexão profunda e de debates intensos ao longo da história da Igreja. A
frase aparentemente simples — “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” — usada
em sermões ou catequeses, pode carregar um risco de polarização se for
compreendida de modo reducionista. O exemplo dado por Andrea Grillo, ao retomar
a pergunta de Carlos, o Calvo no século IX, é ilustrativo: “Na comunhão,
recebemos o corpo e o sangue de Cristo em verdade ou em mistério?”.
Essa
pergunta abriu um campo de tensão. Em vez de integrar, ela opôs. A polarização
surge quando se contrapõem termos que deveriam ser harmonizados: realidade
versus mistério, pão versus corpo, vinho versus sangue. A teologia eucarística,
ao longo de séculos, buscou superar essa oposição, elaborando a doutrina da
transubstanciação como resposta despolarizada.
Este
aprofundamento pretende mostrar como esse caminho se desenvolveu, quais foram
seus fundamentos, seus limites e sua atualidade pastoral. Ao mesmo tempo,
pretende evidenciar como a polarização pode empobrecer a compreensão da fé e
como a despolarização abre horizontes para uma vivência mais autêntica do
mistério eucarístico.
No
século IX, o rei Carlos, o Calvo (823–877), neto de Carlos Magno, levantou a
questão sobre a presença de Cristo na Eucaristia: “É o corpo e o sangue de
Cristo em verdade ou em mistério?”. Essa formulação já traz em si um problema:
coloca o fiel diante de uma oposição exclusiva — ou é verdade (presença real),
ou é mistério (presença simbólica).
O
risco dessa formulação está em reduzir a complexidade sacramental a uma escolha
binária. O “mistério” não exclui a verdade, e a “verdade” não anula o mistério.
Na tradição cristã primitiva, especialmente em autores como Santo Ambrósio e
Santo Agostinho, os termos eram usados de modo complementar. Ambrósio, por
exemplo, dizia tranquilamente que o pão é “figura” do corpo de Cristo, sem que
isso significasse uma negação da presença real.
Portanto,
a questão de Carlos, o Calvo, inaugura uma polarização destrutiva: exige que se
escolha entre dois polos, quando a fé eucarística exige articulação e
coordenação.
Durante
cerca de 400 anos, teólogos no Ocidente trabalharam para oferecer uma resposta
adequada. A dificuldade estava em como explicar que o pão e o vinho continuam
aparecendo como tais, mas são, ao mesmo tempo, o Corpo e o Sangue de Cristo.
Foi
nesse contexto que amadureceu a noção de transubstanciação, consolidada no
Concílio de Latrão IV (1215) e reafirmada no Concílio de Trento (século XVI).
Essa doutrina buscava ser uma resposta despolarizada, evitando dizer
simplesmente “é pão” ou “não é pão”.
A substância do pão e
do vinho se converte na substância do Corpo e do Sangue de Cristo.
As espécies ou
acidentes (aparência, sabor, forma) permanecem os mesmos.
            É pão (no nível dos acidentes).
            Não é pão (no nível da substância).
            É Corpo de Cristo (na substância).
            Não é Corpo de Cristo (nos
acidentes).
Esse raciocínio,
sintetizado na expressão de Lanfranco de Pavia — “é pão e não é pão, é o mesmo
corpo e não é o mesmo corpo” —, é um exemplo de tentativa de superação de
polarização.
A teologia
eucarística medieval mostra que o trabalho teológico muitas vezes consiste em
despolarizar debates, harmonizando dimensões aparentemente opostas.
4.1. Distinção sem
divisão
A chave foi
introduzir distinções que não dividem, mas articulam:
            Substância x acidentes
            Figura x realidade
            Presença simbólica x presença real
A despolarização não
elimina a tensão, mas a ordena dentro de uma visão mais ampla.
Dizer
que a Eucaristia é “mistério” não nega sua verdade. Pelo contrário, o mistério
é a maneira como a verdade de Deus se manifesta sacramentalmente. A oposição
inicial de Carlos, o Calvo, era falsa. A teologia medieval mostrou que é
possível afirmar simultaneamente mistério e verdade.
Apesar
do desenvolvimento teológico, frases catequéticas simplificadas como “Isto não
é pão, mas o Corpo de Cristo” pode ressuscitar a polarização original.
Essa formulação pode
gerar:
            Confusão: parece negar a evidência
sensível (o fiel continua vendo pão).
            Fundamentalismo: leva a um “milagre
físico” em vez de um mistério sacramental.
            Perda do simbolismo: despreza a
linguagem do sinal, essencial na teologia sacramental.
É preciso recuperar
uma catequese que saiba afirmar:
            A realidade da presença de Cristo.
            O valor do sinal sacramental (pão e
vinho como mediações).
            A dimensão de mistério, que une
verdade e simbolismo.
6.1. Santo Ambrósio
Ambrósio falava que o
pão é “figura” do corpo de Cristo. Para ele, “figura” não significa mera
aparência ilusória, mas sinal eficaz da realidade.
Agostinho
via na Eucaristia um “sacramento” que realiza o que significa: pão e vinho são
sinais visíveis que produzem o efeito invisível.
Tomás
sistematizou a doutrina da transubstanciação, mas nunca separou realidade e
sinal. Para ele, Cristo está presente de modo substancial, mas sob as espécies
de pão e vinho, que conservam seu valor sacramental.
O tema continua atual
porque a polarização não desapareceu. Ela reaparece em diferentes formas:
            1.Polarização espiritualista: ver a
Eucaristia apenas como símbolo comunitário, esvaziando a presença real.
            2.Polarização fisicista: tratar a
presença real como mudança material, ignorando a dimensão sacramental.
            3.Polarização pastoral: reduzir a
comunhão a mero rito de devoção, sem ligação com a vida cristã.
A verdadeira fé
eucarística exige superar essas reduções.
8.1. Recuperar a
linguagem sacramental
A
Eucaristia não é nem pura metáfora nem pura transformação física: é sacramento,
realidade nova que une sinal e graça.
O pão e o vinho são
frutos da terra e do trabalho humano. Tornam-se Corpo e Sangue de Cristo, e
isso compromete o fiel a viver em comunhão, partilha e serviço.
Em
vez de fórmulas rígidas, é preciso conduzir os fiéis ao mistério, ajudando-os a
compreender a riqueza de significados da celebração eucarística.
O
exemplo da frase “Isto não é pão, mas o Corpo de Cristo” mostra como a
linguagem pode gerar polarização e reduzir o mistério eucarístico a uma
contradição simplista. A história da teologia, desde a pergunta de Carlos, o
Calvo, até a formulação da transubstanciação, ensina que a fé precisa de
categorias despolarizadas, capazes de articular presença e sinal, verdade e
mistério, pão e Corpo de Cristo.
A
tarefa pastoral hoje é continuar esse esforço: falar da Eucaristia de modo que
o fiel compreenda que, ao mesmo tempo em que vê pão e vinho, recebe realmente o
Corpo e o Sangue de Cristo. Essa presença não anula os sinais, mas se realiza
por meio deles.
A
despolarização, portanto, não é concessão ao relativismo, mas caminho de
fidelidade criativa ao Evangelho. Como os teólogos medievais, somos chamados a
elaborar linguagens que permitam aos fiéis viver o mistério sem reduzi-lo a
contradições superficiais.
A
Eucaristia é pão e não é pão; é vinho e não é vinho; é Corpo e Sangue de Cristo
em verdade e em mistério. Esse paradoxo não é problema, mas expressão da
riqueza do sacramento, que só pode ser acolhido na fé.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Da Serpente de Bronze à Cruz de Cristo: do Símbolo à Plenitude da Salvação
O relato de Números 21,4-9, em que Deus ordena a Moisés erguer uma serpente de bronze para curar os israelitas picados por serpentes venenosas, é mais do que um episódio curioso da história do povo de Israel. Trata-se de uma revelação profunda da pedagogia divina, que transforma o símbolo da morte em sinal de vida. Esse acontecimento, interpretado pela tradição judaica e relido pela fé cristã, culmina na cruz de Cristo como plenitude da salvação.
A
tradição rabínica, especialmente a Mishná (Rosh Hashaná 3,8), ensina: “A
serpente não matava nem dava vida; mas, quando Israel olhava para cima e
submetia o coração a Deus, eram curados; e quando desviavam os olhos,
pereciam.”
Com
isso, os mestres de Israel deixam claro que não havia poder mágico na serpente
de bronze. O gesto de levantar os olhos não era superstição, mas um ato
espiritual de conversão, uma expressão de arrependimento e confiança no
Eterno.
Esse
ensinamento se torna um antídoto contra a idolatria. A serpente de
bronze não tinha valor em si mesma: era apenas instrumento pedagógico, um sinal
que remetia ao Criador. A salvação não vinha do objeto, mas da relação com
Deus. Assim, o olhar para cima simbolizava a submissão do coração e a abertura
à graça que cura.
Essa
interpretação rabínica mostra como Deus age de forma pedagógica: não elimina as
consequências do pecado de modo imediato, mas convida à conversão interior. O
veneno das serpentes representava a infidelidade do povo, e o levantar dos
olhos simbolizava a necessidade de retornar ao Senhor.
A
serpente, símbolo de morte e de pecado desde Gênesis 3, torna-se, por ordem de
Deus, instrumento de cura. Esse paradoxo é chave para compreender a lógica
divina: Deus não suprime o mal simplesmente, mas o transfigura em bem.
Esse
princípio se repete em outros momentos da Escritura. José, vendido pelos
irmãos, afirma no Egito: “Vós pensastes o mal contra mim, mas Deus o
transformou em bem” (Gn 50,20).
Assim,
o episódio da serpente de bronze ensina que Deus é capaz de transformar aquilo
que parece derrota em vitória. Porém, quando o povo começa a venerar a serpente
de bronze como um ídolo, séculos depois, o rei Ezequias a destrói (2Rs 18,4).
Isso reforça a lição: o símbolo tem valor apenas enquanto remete a Deus; quando
se torna fim em si mesmo, degenera em idolatria.
O
Evangelho de João retoma diretamente esse episódio: “Assim como Moisés levantou
a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado,
para que todo o que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15).
Jesus
interpreta a serpente de bronze como figura profética da cruz. Assim
como os israelitas eram curados ao olhar para a serpente, todo aquele que
contempla o Cristo crucificado com fé encontra a salvação.
Aqui
está o coração da revelação cristã: a cruz, instrumento de tortura e vergonha,
torna-se o novo estandarte de cura e vida. O que era sinal de condenação
transforma-se em fonte de esperança. Na cruz, o mal não é simplesmente vencido,
mas assumido e redimido.
São
Paulo expressa essa lógica ao dizer: “Nós pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1,23).
A
cruz é incompreensível pela lógica humana, mas, à luz da fé, torna-se poder
de Deus e sabedoria de Deus.
Assim
como os israelitas precisavam levantar os olhos para a serpente, o cristão é
chamado a contemplar a cruz. Esse olhar, porém, não é físico, mas
espiritual: olhar com fé significa reconhecer no Crucificado a presença do
Salvador, ver além da dor e enxergar a ressurreição.
Cristo
“se fez pecado por nós” (2Cor 5,21). Assumiu sobre si o peso do mal,
transformando-o em caminho de redenção. A cruz revela, portanto, a pedagogia
divina: Deus não elimina o sofrimento por decreto, mas o assume para redimi-lo.
Contemplar
a cruz é, então, um ato transformador. É reconhecer o amor radical de Deus que
se entrega totalmente. Por isso, a cruz não é memória de derrota, mas sinal de
vitória, não é marca de sofrimento apenas, mas de esperança.
Imagine
um israelita no deserto, ferido pelo veneno e prestes a morrer, levantar os
olhos e sentir a vida retornar ao corpo. Esse gesto de fé trazia não apenas
alívio físico, mas também alegria espiritual: a certeza de que Deus não havia
abandonado seu povo.
De
modo semelhante, o cristão que contempla a cruz experimenta uma alegria maior.
Se a serpente de bronze trazia cura temporária, Cristo na cruz oferece cura
definitiva e salvação eterna.
Essa
alegria não é euforia passageira, mas paz profunda. É a certeza de que os
pecados foram perdoados, que a morte foi vencida e que a vida eterna nos é
oferecida.
Na
liturgia católica, a cruz ocupa lugar central. Na Sexta-Feira Santa, ela
é elevada solenemente para a adoração dos fiéis, com o canto: “Eis o lenho
da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo”. Esse gesto retoma a pedagogia
bíblica: contemplar o madeiro como sinal de vida.
Também
na Eucaristia, quando o sacerdote eleva a hóstia e o cálice, torna presente o
mistério de Cristo elevado na cruz. Não se trata de recordar um evento passado,
mas de atualizar sua eficácia salvífica.
Assim,
a cruz não é um símbolo distante, mas realidade presente na vida da Igreja e
dos fiéis. Ela acompanha o cristão em suas dores e em suas esperanças, sendo
sinal constante do amor que salva.
A
serpente de bronze foi um sinal pedagógico que apontava para algo maior.
Cristo, elevado na cruz, leva esse sinal à plenitude. Assim como os israelitas
precisavam olhar para cima para serem curados, também nós precisamos levantar
os olhos da fé para Cristo crucificado.
Na
cruz, encontramos o Deus que não apenas cura, mas redime; não apenas consola,
mas salva. Ela nos recorda que o sofrimento não tem a última palavra, mas que
Deus transforma a dor em esperança e a morte em vida.
Por
isso, contemplar a cruz é participar da alegria da salvação. É deixar-se
transformar pelo amor de Deus que se entrega. É reconhecer que, no alto do
madeiro, se revela o coração do Evangelho: o amor que vence o mal e oferece
vida eterna.
Assim,
do deserto à cruz, a história da salvação é marcada por um gesto essencial: olhar
para cima. Pois é lá, no alto da cruz, que encontramos o Deus que desceu
para nos elevar.
Notas
bibliográficas
- Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Paulus,
     2014. (Nm 21,4-9; Gn 50,20; 2Rs 18,4; Jo 3,14-15; Jo 12,32; 1Cor 1,23;
     2Cor 5,21).
 - Mishná, Rosh Hashaná 3,8 – Tradução e comentários em:
     DANBY, Herbert. The Mishnah. Oxford: Oxford University Press, 1933.
 - RATZINGER, Joseph (Bento XVI).
     Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.
 - CONGAR, Yves. A cruz de
     Jesus Cristo. São Paulo: Paulus, 2000.
 - KASPER, Walter. O mistério
     da cruz. São Paulo: Loyola, 1981.
 - SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo
     e os cristãos. São Paulo: Paulus, 1996.
 













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